quarta-feira, 1 de abril de 2009

Jogos Cooperativos

Isso de Ganhar...
Artur da Távola
[1]


Será mesmo necessário ganhar? De onde vem a necessidade do ser humano de ganhar? O futebol do futuro vai ser sem o gol como única aferição da vitória e sem juiz. O momento do gol será festejado pelos dois times e cumprimentados os autores. Nem será necessário a bola transpor a linha. Uma bela jogada de conclusão infeliz será considerada meio gol pelo time adversário que aceitará a qualidade de sua urdidura e mandará anotar o meio ponto. Haverá uma qualificação para a beleza das jogadas a valer pontos e dela participarão os dois times, mais empenhados em descobrir a beleza do que em evitá-la. O resultado final será a mescla do número de gols, como o de escanteios, o de jogadas consideradas belas e atitudes dignas de registro. Os dois times se reunirão para o proclamar e ambos comemorarão o fato de terem feito o espetáculo, aproveitando para verificar em que pontos melhoraram.
No futebol do futuro o adversário não servirá para ser superado ou superar, e, sim, para ajudar a conferir em que aspectos cada time superou-se (a si próprio e não ao adversário). O adversário nem assim se chamará. Será “o solidário”. As notícias dirão:

“A seleção brasileira solidarizou-se ontem com a da Alemanha na verificação dos pontos em que ambas progrediram. A do Brasil venceu a si mesma por três pontos e a da Alemanha empatou com o desempenho anterior. Ao final todos juntos comemorarão a alegria de compartir o esporte e de ajudar um ao outro na tarefa de auto-superação”.

Será o texto acima o de uma utopia ou o homem do futuro, liberto do mito do herói e da necessidade de poder o engendrará?
No dia em que o homem se tornar inteligente, e efetivamente livre, o esporte vai ser uma aferição exclusiva da auto-superação com a ajuda do outro, na condição de solidário e não de adversário. Deverá empenhar-se o máximo e o melhor que saiba. Como solidário e não como adversário, os desempenhos desportivos melhorarão enormemente. “O que faz a mão tremer na hora de retesar o arco é a obrigação de acertar”, já o diz, há milênios, a sabedoria do Taoísmo chinês.
Existe, mesmo, a necessidade de ganhar? Ou é dessas atitudes diante das quais só nos resta dizer: “O homem gosta de ganhar, precisa ganhar”.
Não analisar esse mecanismo compulsório é aceitá-lo e construir uma ordem social, econômica e política baseada na vontade secreta de vitória que anima o ser humano. Supondo-se ganhador o homem se sentirá seguro e deferirá ao sistema no qual viva os méritos de o haver conduzido à vitória.
Ganhar dos demais é eco do tempo em que, para sobreviver, o animal tinha que disputar a comida com os da própria tribo. A humanidade levou milênios nessa atitude. A disputa entre os sistemas políticos, entre os homens nas rinhas e entre os desportistas, são uma rememoração inconsciente da longa etapa (milênios), na qual o preço da própria vida era a capacidade de disputar a presa com o semelhante. O sentido de disputa como essencial à manutenção da vida permaneceu no inconsciente humano até hoje. A cada vitória o homem tem a sensação de preservação da própria vida bem como a cada derrota infiltrar-se – sorrateira – a idéia da morte disfarçada pelos signos da depressão, tristeza e falta de ânimo. Os fracos devem morrer, reza a lei da natureza bruta, que o homem supõe ter superado, sem, efetivamente, o ter logrado. Animo é (etimologicamente) alma e, sem ela, a vida é morte.Ganhar o que, de quem e para quê? Qual o sentido de ganhar? O que se ganha, ganhando? Uma alegria superpassageira e fugaz, algo culpada até, porque há sempre alguma crueldade embrulhada na mais legítima vitória.
Vencer, ganhar, levar a melhor é parte importante do universo infantil, povoado de fantasias onipotentes. Na fantasia onipotente a criança se defende das limitações de tamanho, idade e força, fabulando situações nas quais é superpoderosa, vencedora. Por isso se identifica tão fortemente com os mitos representativos da força máxima, absoluta, onipotente. São um mecanismo simbólico pelo qual a fantasia se manifesta.
Depois de crescidas, mudam as formas e a maneira de as conceber ou encarar, mas qualquer adulto fixado nos mitos infantis ou incapaz de os perceber lavrando interiormente, transforma a própria vida numa ânsia doida de vitória, êxito, ou se não, pelo menos de derrota, queda ou destruição dos que lhe são contrários, inimigos, diferentes, antipáticos ou adversos.
Pessoas e países. Estes, aprisionados dentro do mito do herói (e não são poucos) entram na mesma paranóia e se transformam em enormes máquinas de capital e de estado destinadas a manter o poder, a força e a hegemonia de qualquer grupo, classe, burocracia ou casta dominante.
Crianças, adultos que vivem em disputa e necessitados de só vencer (em vez de “venSer”) e países cuja meta não é o progresso do homem mas a riqueza para o poder. Crianças, adultos e países aí estão a nos mostrar como é poderosa no bicho homem a necessidade de ganhar, viver em disputa e levar a melhor.
Sem saber que a necessidade de vencer é a talvez principal fonte de sofrimentos do ser humano e das sociedades, o homem permanece aprisionado ao mito do herói, incapaz de aproveitar a energia despendida nessa luta estúpida, para outros tipos de vitória, as que não têm por meta a destruição de outras partes, e, sim, evoluir através da construção do mundo, da criatividade, da organização de sociedades justas, igualitárias e fraternas que não necessitem do impulso da competição para obterem a força de trabalho e a disposição necessárias ao avanço e à evolução.
Vencer é importante e significativo de aspectos positivos e ativos do homem. Mas vitória só existe onde aparece a criação com a conquista de novos passos e não onde jazem cadáveres dos antagonistas ou a cisão de partes do real, representada pela posição dos discordantes.
Vencer é importante quando se luta por uma ordem positiva e não quando se luta contra o que nos parece negativo. Vencer é uma atitude positiva diante da vida e não a derrota do positivo que havia nos antagonistas.
Mas se o homem precisa ganhar, aprecia ganhar, não vive sem ganhar, poderíamos, então, trocar o adversário. Não se trata de ganhar do outro. Mas de ganhar de si mesmo através do outro. Os competidores, juntos, debruçar-se-iam sobre as virtudes próprias e adversárias (solidárias) na busca dos pontos nos quais houvesse superação de desempenhos anteriores.
Vivemos, porém, numa realidade que assim não dispõe. As pessoas se comportam em função de ditames impostos pelas ideologias e os nomeiam de “realismo”. A nuvem pragmática que invadiu a humanidade no século XX determinada pela utopia do progresso material, científico e tecnológico levou os processos educativos (os escolares e os dos costumes) a colocar na eficácia, no resultado e na forma, toda a finalidade dos atos humanos.
Tal determinação da utopia materializante das ideologias da sociedade industrial (capitalismo e comunismo) gerou regras, leis não escritas e comportamentos, identificando o realismo não como uma visão ampla do real, mas apenas com as atitudes necessárias ao seu lado “eficaz”, “útil”, “funcional”. A hipertrofia do funcional determinou o recuo outros conteúdos do real, como o “moral”, o “poético”, o de “justiça”, “virtude”, “beleza”, “igualdade”, “sensibilidade” etc. que passaram a ser conotados como “fora da realidade” quando eram e são partes integrantes dela. Daí a grave crise civilizatória em que estamos, intoxicados de “vitorismo” e de uma ética inventada para glorificar vitórias a qualquer preço, esquecendo que perder também faz parte da vida. E, muitas vezes, o que parecer ser perder pode ser “perdar”.
[1] Comunicação é Mito: televisão em leitura crítica, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 275-279

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