quinta-feira, 2 de abril de 2009

Teoria e Prática em Educação Física

PERSPECTIVAS E TENDÊNCIAS DA RELAÇÃO TEORIA E PRÁTICA NA EDUCAÇÃO FÍSICA

Markus Vinícius Nahas e Maria Fermínia Luchtemberg de Bem (UFSC)
MOTRIZ - Volume 3, Número 2, Dezembro/1997

RESUMO
Este artigo discute perspectivas da relação teoria-prática na Educação Física, apresentando, para tanto, as proposições de diversos autores que contribuíram para aprofundamento de questões acadêmicas profissionais e da identidade desta área. Muitas das questões apresentadas derivam-se de exposições ocorridas no IV Simpósio Paulista de Educação Física, cujo tema Central foi Teoria e Prática em Educação Física. Destaca-se a caracterização ciência(s) - profissão (ões), a questão da competência profissional, a perspectiva da qualidade de vida no contexto da Educação Física e discute-se a relação teoria-prática frente a estas proposições.
UNITERMOS: Educação Física; Teoria e Prática; Ciência e Profissão

INTRODUÇÃO
O objetivo deste ensaio é questionar e apontar perspectivas e tendências da relação Teoria e Prática na Educação Física, tendo como preocupação constante mostrar a pluralidade e a riqueza das diferentes concepções existentes, pois este é um tema aberto e sujeito a novos questionamentos.
Nesta tarefa tivemos como preocupação levar em consideração nossa vida acadêmica, pautada por um certo grau de ousadia, muito trabalho e sobretudo a consciência de nossas limitações. Somos contemporâneos de uma época em que predominava (e ainda predomina) a valorização exagerada da sub-especialização, da fragmentação desta área, mas optamos por realizar nossa pós-graduação sem perder o vínculo direto e permanente com o campo profissional que origina e justifica todo esse trabalho. Somos, acima de tudo professores de Educação Física, envolvidos essencialmente com a manifestação cultural e biológica do ser humano que denominamos atividade física. Nossa formação em filosofia, sociologia, fisiologia ou biomecânica, são os que consideramos necessários para que possamos atuar como professores, produtores e consumidores de conhecimentos, numa área que busca sua identidade definitiva, mas que ainda e somente é reconhecida como EDUCAÇÃO FÍSICA.
Nesta última década, no Brasil, o avanço – ainda que desordenado - desta área, ciência, disciplina e/ou profissões que enfoca o desenvolvimento do ser humano na perspectiva da atividade física, tem sido claro.
Acreditamos, também, que, não podemos nos furtar a contribuir ao debate de idéias, assimilando as críticas como elementos indispensáveis ao crescimento pessoal e ao amadurecimento desta área de conhecimento.

EDUCAÇÃO FÍSICA, CIÊNCIA(S) E PROFISSÃO.A área, o Objeto de Estudo
Há mais de três décadas, em diversos países, vêm se discutindo sobre qual ciência (ou ciências) fundamentaria as áreas profissionais que atuam com a atividade física do ser humano, nas suas mais diferentes formas e condições.Estudiosos desta área, ainda amorfa, têm apresentado diversos modelos que tentam denominá-la mais “adequadamente” e definir as relações das atividades profissionais com a disciplina acadêmica específica que supostamente as fundamentam. HENRY (1964), RARICK (1967), RIVENES (1978), LAWSON (1979), KROLL (1982), ROSE (1986), SÉRGIO (1987), NEWELL (1990), BOUCHARD e colaboradores (1992), BENTO (1993), são alguns dos nomes de autores estrangeiros que propuseram mudanças, às vezes profundas, às vezes meramente cosméticas para nosso campo de atuação.
Um avanço significativo foi marcado pelo posicionamento da American Academy of Phisical Education (MORFORD, 1993), quando se posicionou sobre o assunto em 1988, sugerindo que a disciplina acadêmica seja denominada Cinesiologia. Consenso maior tem havido em torno da idéia de um campo de conhecimento, referido como Cinesiologia, Ciências do Esporte, Ciências da Atividade Física, ou simplesmente Educação Física. Este campo de conhecimento abrangeria uma disciplina acadêmica (ou um corpo de conhecimentos) que fundamentaria as profissões aglutinadas em torno do tema central: movimento humano, esporte ou atividade física.
No Brasil, os anos 80 inauguraram uma fase de debates semelhante à que iniciara 20 anos antes nos EUA.
Ainda que a discussão até este ponto tenha sido, em grande parte, inóqua, o aspecto positivo está no fato de que finalmente acordamos para o mundo real, enxergando nossas incoerências (propondo outras, é verdade), mas verificando que não somos apenas fruto da lei, que precisamos legitimar nossa atuação perante a sociedade, que podemos ter um corpo de conhecimentos de certa forma “exclusivo” e, quem sabe, até nos tornarmos uma profissão de verdade! (próxima aos parâmetros descritos por MORFORD, 1993).
Sobre este tema, destacamos na publicação do Livro do Ano da SBDEF (1992), o trabalho de FARINATTI, que analisou com profundidade a crise e as transformações por que passam as ciências em geral e os reflexos na nossa área.
Mais recentemente (TANI, 1996) discute com profundidade os acontecimentos que marcaram a evolução no debate de identidade da Educação Física e apresenta conceitos e modelos que, segundo o autor, abrigam as diversas área do conhecimento por ele apresentadas, em particular no tocante à estrutura universitária.
Enquanto campo do conhecimento, temos sobrevivido à ausência de paradigmas, à influência médica e militar, à fragmentação pela subdisciplinarização, ao cientificismo absoluto e, mais recentemente, ao pedagogismo exacerbado. Acreditamos estarmos nos encaminhando para a superação de incoerências graves, quando voltamos nosso foco de estudo não excludente, numa perspectiva da qualidade de vida para além da escola. Nossa legitimação enquanto campo profissional relevante socialmente, acreditamos, começa por aí.
Os temas de diversos simpósios, congressos e seminários atentam à característica peculiar da multidimensionalidade profissional que nos afeta. A educação física escolar, ainda que continue como um dos serviços relevantes que prestamos à sociedade, já não é o único. A área é maior que a educação física escolar, embora seja muito pouco sem ela. Dito de outra maneira, como afirma BENTO (1993), “o desporto não existe mais no singular, mas sim no plural. É plural no que concerne a motivações, a intenções, a finalidades, a condições, a modelos; ... A formação do pedagogo do desporto deve voltar-se equilibradamente para todas as fases da vida, para os diversos locais institucionais, acompanhando as necessidades e interesses pelas práticas desportivocorporais de todos os grupos sociais e etários” (p. 6).
Pode-se acrescentar o que BETTI (1993) sugere: “a Educação Física deve propiciar o acesso e usufruto da cultura corporal ao maior número possível de pessoas, em benefício de suas qualidades de vida.” (p. 6)

CORPOREIDADE, LEGITIMIDADE E COMPETÊNCIA PROFISSIONAL
ASSMAN (1993), nos coloca a corporeidade como instância de critérios para a Educação. Trinta anos de vida acadêmica e 20 livros publicados endossam esta visão macro, mas detalhista, dos conceitos centrais para uma teoria pedagógica, baseada na relação percebida e interpretada do mundo real - nossa corporeidade.
MORFORD (1993) aponta para um paradoxo na Educação Física mundial: enquanto o interesse pela prática espontânea de atividades físicas vem crescendo em todas as faixas etárias, crescem também as pressões sobre a educação física escolar. Este estudioso destacou dois problemas graves - além da questão de definição do corpo de conhecimento: (a) a questão profissional relativa à identidade, autoridade, percepção pública e relevância; e, (b) a confusão reinante nos programas de formação profissional, onde, segundo MORFORD, é preciso haver mais coerência, integração e seqüência de conteúdos, tematizando problemas de forma interdisciplinar e evitando a fragmentação da área. Fatores como estes têm colaborado para a desprofissionalização da área, num mundo de mudanças muito rápidas, e não acompanhadas pela Educação Física.
A Educação Física, enquanto profissão, carece de legitimidade (de acordo com MORFORD) pelos seguintes motivos: (1) Indefinição do corpo de conhecimento; (2) Outras áreas assumem funções, em princípio, atribuídas a Educação Física; (3) Indivíduos sem formação na área se dizem igualmente competentes e, às vezes, têm o reconhecimento da sociedade; (4) Existe confusão sobre a finalidade, a missão da área; (5) Faltam critérios éticos, de conduta profissional e credenciamento para atuação no mercado de trabalho.
No Brasil, “crise” tem sido a palavra mais ouvida nos últimos anos. Ainda que real e grave, como a crise social do país, a crise da Educação Física tem servido também para que muitos incompetentes se escondam sob este manto para justificar seu imobilismo. Da mesma forma, tem criado ambiente propício para a propagação de denúncias sem propostas, de profetas do caos, em seu sentido mais tradicional.

A RELAÇÃO TEORIA/PRÁTICA NO ENSINO DA EDUCAÇÃO FÍSICA
Muitos teóricos têm se manifestado no intuito de superar e/ou clarear a difícil relação Teoria e Prática na Educação Física. Concordamos com os autores que afirmam ainda predominar a visão dicotômica da relação Teoria e Prática em Educação Física. A idéia de práticos de um lado e estudiosos (teóricos) de outro, ainda serve para descrever a realidade da Educação Física.
Historicamente, segundo AURAS (citada por NAHAS, 1991), distinguem-se pelo menos três interpretações na relação teoria-prática.
A primeira delas coloca uma situação de oposição entre teoria e prática. Neste sentido clássico, a teoria é posta numa posição infinitamente superior à prática, que pode até derivar-se da primeira, mas nunca ter igual importância.
Uma segunda concepção preconiza uma relação de justaposição entre teoria e prática. Aqui a teoria já não é auto-suficiente, ou pura abstração, isolada e antagônica à prática. Nesta concepção, teoria e prática são pólos justapostos, onde a teoria comanda a prática, que, por sua vez, não cria, não concebe. A teoria não tenta explicar ou interpretar os fenômenos naturais e humanos a partir de sua origem real.
A terceira concepção na relação teoria-prática sugere uma associação, sem que isto signifique a dissolução de uma na outra. Assim, a elaboração da teoria não pode ocorrer fora do horizonte da prática, convertida em fundamento e critério da verdade da teoria.
Partindo de referenciais teóricos distintos, KUNZ (1993), REZENDE (1993) e BETTI (1993) apresentaram instigantes ensaios que expõem algumas das mais marcantes contradições e, por caminhos diversos, propõem formas de superar estas dificuldades presentes na Educação Física escolar.
As proposições para a Educação Física Escolar brasileira têm se dado, segundo REZENDE, a partir da dependência cultural, reduzindo modelos estrangeiros e alternativas extra-escolares, como as instituições médica, militar e desportiva. A manutenção da Educação Física como componente curricular tem se dado mais em função de aspectos legais e institucionais do que por “justificativas teórico-práticas que a legitimam, social e pedagogicamente” (1993, p. 4).
DO CONHECIMENTO À PRÁTICA: A PROCURA PELA QUALIDADE DE VIDA
Cada dia na vida do ser humano representa uma experiência com infinitas possibilidades de aprendizagem.
Incontáveis ingredientes da vida - pensamentos, pessoas, sentimentos, coisas, atividades, experiências, sucessos e fracassos - moldam e diferenciam nosso cotidiano. A interrelação mais ou menos harmoniosa dessa intrigante rede de fenômenos, pessoas e coisas é que tempera a vida de cada um, resultando naquilo que, abstratamente, podese chamar de QUALIDADE DE VIDA.
Em geral, associam-se à expressão qualidade de vida fatores como saúde, bem estar, longevidade, satisfação, disposição e dignidade. Difícil de definir objetivamente, qualidade de vida pode ser considerada como um conjunto de parâmetros individuais e sócioambientais que caracterizam as condições em que vive o ser humano.
A família, a escola, a comunidade e o local de trabalho são as instituições que podem contribuir para o desenvolvimento harmonioso e inteligente do ser humano, levando-o a uma vida mais digna, mais completa. Para tanto, as formas de atividades no trabalho e no lazer precisam ter sentido. A soma destas experiências deve resultar numa vida ativa, intensa, mas não desgastante, como se referiu ASSMAN (1993), no interessante conceito de “corporeidade no limite” (de suas energias), hoje predominante no contexto urbano.
Neste contexto, a ATIVIDADE FÍSICA tem, cada vez mais, representado um fator de qualidade de vida, para todas as pessoas, independente de faixa etária ou nível social. A par de ser o elemento aglutinador nos programas de Educação Física, a atividade física é também considerada um fator central nos programas de prevenção das chamadas “doenças da civilização” e promoção da saúde. A Educação Física, é óbvio, não pode estar alheia a este desenvolvimento. Não se trata de voltar ao espírito higienista do início do século. Trata-se de abrir os olhos para as evidências e não negar um dos objetivos fundamentais deste nosso campo de conhecimento: investigar e trabalhar a relação atividade física e qualidade de vida, individual e coletiva.
A inclusão deste tema, nos mais variados debates, mostra a preocupação com essa discussão. Na Educação Física, a questão da qualidade de vida fica ampliada quando saímos do eixo tradicional dos serviços prestados à sociedade, ou seja, o trabalho com jovens escolares considerados “normais”. O trabalho com o deficiente, na chamada educação física adaptada, com o idoso, o obeso, o cardiopata, o diabético, entre outros, representa um dos aspectos mais relevantes nesta perspectiva de interação atividade física e qualidade de vida. LORENZETTO (1993) discutiu e incluiu a revolução do lúdico na perspectiva da qualidade de vida.
Para o autor, qualidade de vida passa por “conhecer-se, manifestar-se, relacionar-se e realizar-se em sua totalidade”. Nesta perspectiva, o jogo, o brinquedo, a ludicidade - em todas as idades - podem intermediar esta relação atividade física/qualidade de vida.

CONCLUSÕES
A coerência entre o que se pensa e o que se faz, ou entre o corpo de conhecimento e as profissões de uma área, é fundamental para a legitimação acadêmicoprofissional desta área. A relação Teoria-Prática (compreendidas num contínuo, mutuamente determinantes) representa a espinha dorsal de um campo de conhecimento socialmente justificável. A legitimidade de uma profissão passa, portanto, pela coerência interna do seu corpo de conhecimentos e da percepção social da relevância e exclusividade de sua prática.
Mais que uma questão de nomes, nossa área carece de uma identidade acadêmico/profissional clara e socialmente justificável. Mesmo a nível internacional, perante a sociedade, o termo que ainda se aproxima mais daquilo que se estuda e se faz em nossa área é Educação Física. Internacionalmente, termos charmosos e academicamente “superiores” (como Cinesiologia, cineantropologia ou cinética humana), ou mesmo motricidade humana ou ciência do movimento, além de não serem socialmente identificados com esta área que teimamos em fazer existir, provocam confusão e descaracterizam nossa essência. Mas, como afirmamos, não é este o maior problema.
Ainda relutamos em assumir como foco central de nosso Campo de Conhecimento a atividade física do ser humano, enquanto fenômeno biológico e comportamental, que inclui manifestações como o exercício físico, o esporte, a dança, a locomoção e a atividade laboral. A multiplicidade de formas, de práticas, de motivações e modelos desta faceta do comportamento humano, conferem à nossa área esta característica de pluridimensionalidade, que justifica a diversidade nas pesquisas e a convivência de atividades profissionais diferenciadas.
Vários autores destacam a sub-especialização desenfreada, que fragmenta a área, e tende a distanciar estes “especialistas” do foco do campo de conhecimento, aproximando-os definitivamente das chamadas “disciplinas-mães” (psicologia, fisiologia, sociologia, educação, etc.). Diríamos que isto ocorre, em parte, por um complexo de inferioridades que permeia entre profissionais da área (cientistas, professores, treinadores, etc). Como sugere CORBIN (1991), precisamos abandonar este complexo, esta percepção de descrédito e desrespeito social para podermos avançar.
A produção do conhecimento se dá de muitas maneiras e não podemos ignorá-las. Da observação informal numa situação de trabalho, à pesquisa básica em laboratórios sofisticados, podem derivar conhecimentos mais ou menos elaborados que acabam compondo um “corpo de conhecimento” de uma área.
A depuração lógica, a verificação empírica ou a reflexão mais profunda, serão os filtros que, gradativamente, darão consistência e maior respeitabilidade a este corpo de conhecimento, que terá sua origem e destino nos problemas da prática profissional que busca qualificar-se como elemento enriquecedor da vida humana. A pesquisa, portanto, deve ter compromisso com o foco central do campo de conhecimento: a atividade física do ser humano.
Fica claro, desta forma, que as questões da profissionalidade e da formação profissional são tão relevantes - e mais urgentes - que a definição do campo de conhecimento “exclusivo” e de “nomes” para a área.
Precisamos enfatizar a preparação profissional de qualidade daqueles que irão atender às necessidades da sociedade nas questões do exercício físico, esportes, recreação, dança, etc. São funções especializadas e com particularidades, como bem coloca BENTO (1993), exigindo competências culturais, sociais e pessoais..
Paralelamente, a universidade precisa sair de sua “redoma acadêmica”, indo ao encontro de problemas da profissão, fazendo chegar ao profissional o conhecimento já disponível.
Enquanto profissionais, temos que acreditar em nós, resgatar nossa dignidade. Isto passa, a nosso ver, pelo reconhecimento dos elementos essenciais que caracterizam e justificam nossos serviços à sociedade.
Com o debate continuado, ações inteligentes e solidariedade, poderemos responder SIM à pergunta de MORFORD (1993) : A Educação Física pode ser uma profissão relevante para o próximo século?

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